quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O Tempo do Salão Árabe

Já passa algum tempo em que nada se passa por aqui.... a toda a hora o mundo continua nesta tarefa incansável que é viver e, tenta-se, viver de olhos bem abertos. Tenta-se, porque muito nos escapa.
O salão está concluído e entregue. Durante este ano de trabalho a CRERE promoveu o trabalho do Salão na óptica do Marketing Cultural e, sem medos, abriu as portas do seu trabalho, converteu-o em cenário e usou-o como palco do "II encontro Sobre os Estuques Portugueses: O Restauro do Salão Árabe". De um objectivo inicial de contarmos com uma assistência, no máximo, de 50 pessoas (sabemos como o mercado cultural em Portugal não é devidamente considerado pela população nacional), o nosso empenho foi claramente dignificado e....ultrapassámos as 150 pessoas. Para além de 20 oradores, a CRERE empenhou-se em editar o livro das Actas relativas ao "I Encontro sobre os Estuques Portugueses" numa parceria CRERE/ Museu Do Estuque/ Bubok criando, assim, a primeira edição da nossa editora: "Museu do Estuque".
Pode não ter interesse para a generalidade do país mas, efectivamente, é a clara demonstração do empreendedorismo da CRERE em prol do património e actuação cultural que tanto defende: assumidamente a sociedade em geral tem de adoptar uma  força motivadora, uma força geradora de potencial de "vontade" num momento tão estagnado como o actual.  Nós acreditamos, e muitos mais também e, sendo assim, já somos alguns a fazer bulir este pais. É bom pensar assim! :)
este é um espaço de partilha e, como tal,  decidi  colocar os 3 capítulos da minha comunicação  (Miguel Figueiredo)     escrita para o  " II encontro Sobre os Estuques Portugueses:  O Restauro do Salão Árabe"   : " O Tempo do Salão Árabe" talvez porque este Tempo que, quase permanece  imutável, não vai ao nosso encontro pelo simples facto de estarmos sempre de "Eyes Wide Shut".



" O Tempo do Salão Árabe"




I - O Tempo do Salão Árabe




Estranho falar de um Salão Árabe no centro histórico do Porto e, ainda para mais, factor determinante que jogou a favor da classificação deste sítio como património Mundial pela UNESCO.

Como é que a arquitectura e decoração do Infiel se instala neste espaço?
Porquê a linguagem, a programação formal e decorativa deste Salão Nobre, actualmente designado de Árabe?
Que fontes e que origens o antecedem e estimulam e inspiram o Eng.º Gustavo Adolfo Gonçalves e Sousa?

“Tudo quanto a arquitectura nos dá a ver e a usar é significativo do viver histórico – e condiciona esse viver nas opções que realiza e revela, quer dizer, nas afirmações que faz”[1] 

Perceber a génese do Palácio da Bolsa e, consequentemente dos Salão Árabe, passa por perceber a transição do setecentos para o oitocentos e o séc. XIX em Portugal.

“1755, no 1º de Novembro, o Terramoto. O mundo português, nas estruturas de classes, do rei ao Governo, da nobreza ao povo, é posto à prova no terror desse dia e dos meses seguintes”[2] . A mudança de ideologia e a manifestação do decaimento do ancien régime andam de mãos dadas com a reconstrução de Lisboa e a materialização de tal situação tem o seu máximo na mudança de nome do “Terreiro do Paço”[3] para “Praça do Comércio”. Este é o facto ideológico mais importante do pombalismo: “Ao rei e à corte sobrepõe-se uma nova classe privilegiada que faz o comércio necessário ao País em “reformação”; mas a estátua equestre que desde os primeiros planos de 56 se previa impõe-lhe o rei no seu centro. (…) a sua existência é que conta para pontuar a monumentalidade da praça nova, numa relação politica que ignora a corte dos nobres”[4].

Há uma manifesta e evidente crise ideológica no início do XIX e a impulsão do país por uma nova burguesia. Estamos em pleno fim do ancient régime e com ele anuncia-se a introdução de novos conceitos ideológicos e sociais que afectam a economia nacional.

Para além desta nova génese social, em 1807 e 1809 ocorrem as invasões napoleónicas que, conjuntamente com a acção libertadora das forças aliadas comandadas pelo duque de Wellington, deixam o país devastado[5].


  fig 1 - 

Alegoria ao exército português, em memória e triunfo da Guerra Peninsular de Luís Gonzaga Pereira (1826)











A crise económica e institucional em Portugal continental agrava-se com a permanência da corte portuguesa no Brasil, o que fortalece as ideias liberais no país, conduzindo à Revolução do Porto (1820). A mudança para uma ideologia essencialmente burguesa, se já é demonstrada por Pombal, é devidamente incrementada pelo Sinérdio portuense[6] , doutrinado por homens de leis e de negócios, e que funcionou como motor à revolução liberal de 1820[7]. É o Vintismo[8] que promove o retorno do soberano à Europa (1821). Neste período a situação económica de Portugal é agravada com a independência do Brasil em 1822 sob a liderança do futuro Imperador D. Pedro I (D. Pedro IV de Portugal: primogénito de D. João VI).

É nesta nova sociedade que se alicerça o novo regime “uma burguesia de barões e financeiros”[9] , onde o mercado comercial e monetário se vê a braços com as necessidades da sua regulação perante a lei; e é com esse objectivo que é estrategicamente fundada a 24 de Dezembro de 1834 a Associação Comercial[10]. A 6 de Agosto de 1842 têm início as obras definitivas à construção do edifício, sob os terrenos do extinto Convento de S. Francisco e cedidos por despacho legal da rainha D. Maria II[11].

O Palácio da Bolsa é, manifestamente, um trabalho edificado pelos maiores nomes associados à defesa do comércio nacional, pelos maiores nomes da arte portuguesa para além de toda uma mole de artistas, artesãos e operários anónimos que durante 62 anos permitiram e asseguraram a materialização de uma ideia através da engenharia, arquitectura e artes nacionais.
Entre o início da obra em 1842 e a conclusão geral de 1909, passaram as determinações de arquitectos/engenheiros como Joaquim da Costa Lima Júnior, Gustavo Adolfo Gonçalves e Sousa, Tomás Augusto Soller, José Macedo Araújo Júnior, Joel da Silva Pereira e José Marques da Silva, pintores como António Carneiro, António Ramalho, Luigi Maninni, Veloso Salgado e Marques de Oliveira entre outros, escultores como Teixeira Lopes e Soares dos Reis e toda uma massa de artífices liderados por artistas como Jorge Pinto e Amândio Marques Pinto (mestres pintores), Joaquim José Fontes e Zeferino José Pinto (mestres entalhadores e marceneiros), António Luís Meira e Luís Pinto Meira (mestre estucador que também foi fiscal de obras e mestre modelador das ornamentações) e António Gabriel barros (mestre pedreiro)[12].

Ao longo dos 62 anos de edificação transitam várias gerações de artistas e artífices: a Bolsa funciona como um gigante atelier de consolidação artística dos mestres e de formação artística dos vários participantes na construção; estes, enquanto trabalhadores, certamente que usufruíam da aprendizagem natural que advinha do contacto com os mestres. Consequentemente, há uma visão da Bolsa como agente de formação artística e de estruturação do grau profissional dos operadores. A construção do Palácio da Bolsa funcionou como uma entidade que foi responsável pela transmissão, multiplicação e manipulação de saberes. Estamos a falar de uma mole que funcionou como uma Escola que produziu como resultado final todo o repositório de modelos que foram usados na programação formal e decorativa dos diferentes espaços do Palácio da Bolsa.



fig 2 - 
Fotografia retirada na Escadaria da Igreja de S. Francisco com a lateral do palácio da Bolsa e com todos os artistas intervenientes








fig 3 - 

Pormenor relativo à identificação dos mestres modeladores e estucadores intervenientes.Identificam-se facilmente pela sua farda branca e chapéus ditos de " envelope" ( a farda criada por D. Fernando II de Portugal  aquando do trabalho de estucaria artística realizada pelos Meira no Palácio da Pena em Sintra).








[1] Vd. http://analisesocial.ics.ul.pt/doucentos/1223994524N9LSB7nv6Hr24ww6.pdf ( consultado em 8 de Janeiro de 2010).
[2] Vd. http://analisesocial.ics.ul.pt/doucentos/1223994524N9LSB7nv6Hr24ww6.pdf ( consultado em 8 de Janeiro de 2010).
[3] Alusão ao Paço Real
[4] Vd. http://analisesocial.ics.ul.pt/doucentos/1223994524N9LSB7nv6Hr24ww6.pdf ( consultado em 8 de Janeiro de 2010).
[5] OLIVEIRA, Carlos - O MAGNÍFICO EDIFÍCIO – A Arte e a Iconografia do Palácio da Bolsa, ediçaodoautor@clix.pt, p. 13.
[6] Grupo de personalidades portuenses que, em 24 de Agosto de 1820, protagonizaram na cidade do Porto a revolta que viria a instaurar o regime liberal em Portugal, na sequência de uma tentativa de sublevação anti-britânica falhada pelo general Gomes Freire de Andrade em 1817. Os abusos dos ingleses mantiveram-se desde essa altura, tal como a miséria pública e a necessidade de reformas urgentes. É assim fundado o Sinédrio, em 22 de Janeiro de 1818, por quatro maçons do Porto - Fernandes Tomás, Ferreira Borges, Silva Carvalho, todos juristas, e Ferreira Viana, comerciante. In http://www.infopedia.pt/$sinedrio (consultado a 8 Janeiro de 2010).
[7] Vd. CARDOSO, António – Palácio da Bolsa, Edição da ACP, Porto, 1994, p. 13.
[8] “ Vintismo é a designação genérica dada à situação política que dominou Portugal entre Agosto de 1820 e Abril de 1823, caracterizada pelo radicalismo das soluções liberais e pelo predomínio político das Cortes Constituintes, fortemente influenciadas pela Constituição Espanhola de Cádis. O vintismo iniciou-se com o pronunciamento militar do Porto de 24 de Agosto de 1820, que conduziu à formação da Junta Provisória do Governo Supremo do Reino presidida pelo brigadeiro António da Silveira Pinto da Fonseca, e terminou com a Vilafrancada, quando a 27 de Maio de 1823 o infante D. Miguel encabeça, em Vila Franca de Xira, uma sublevação militar que leva à abolição da Constituição Política da Monarquia Portuguesa de 1822 e ao restabelecimento, ainda que mitigado, do absolutismo. (…) O objectivo deste movimento era regenerar a pátria, apelando à aliança do rei com as forças sociais representadas nas Cortes. Da convocação destas novas cortes esperava-se uma sábia constituição, propiciadora de uma governação justa e eficaz. O que caracteriza o Vintismo é o grande número de militares e profissionais liberais que participam no processo político. Propõe o fim do absolutismo e o retorno do rei D. João VI para Portugal.” In http://pt.wikipedia.org/wiki/Vintismo (consultado a 8 de Janeiro de 2010).
[9] Vd. CARDOSO, António - ob. Cit. , p.14.
[10] Os mercadores portuenses que haviam perdido a Casa da Bolsa do Comércio e perante essa situação viram-se obrigados a discutir os seus negócios ao ar livre, na rua dos ingleses (a Juntina dos Ingleses). Vd. IDEM - ibidem. p.14.
[11] Pereira, José Ribeiro - 1834- 1994, 150º aniversário. Contributo para a história dos últimos 50 anos, Edição da Associação Comercial do Porto, 1992, p. 65.


[12] BASTOS, Carlos - Associação Comercial do Porto – resumo histórico da sua actividade desde a sua fundação, Edição da Associação Comercial do Porto, 1947, p. 200.  e OLIVEIRA, Carlos - ob. Cit. , p. 24, 26 e 28.