segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Rota de Estuques na Cidade do Porto

O que é que o Porto tem'?
Tem muito estuque tem! Mais propriamente, tem muito trabalho de estuque artístico. Por toda a cidade , no exterior e no interior dos edifícios, os trabalhos em argamassas moldadas manualmente ou com recurso a  moldes (de diversos tipos) , criam a imagem de uma cidade com um vínculo profundo ao que designamos de estuques artísticos. E assim os chamamos graças aos nossos colegas italianos que, de uma forma sagaz, empregam a palavra stucco  (ou estuque) para a designação generalizada de argamassas moldadas independentemente da sua natureza mineral, ou seja, da composição. E é a partir do italiano que a palavra estuque entra no léxico português.
Os estuques tradicionalmente, e desde a antiguidade podem-se dividir claramente em dois tipos: os estuques artísticos à base de cal aérea (e que os italianos designam de stucco forte, stucco anticho ou stucco alla romana) e os realizados à base de gesso (stucco da gesso ou stucco da banco). Tratam-se de formatações diversas de acordo com a disponibilidade tecnológica dos materiais base (cal ou gesso) e de acordo com a menor ou maior densidade de aplicação destes artefactos artísticos na arquitectura. Sem dúvida que é a partir do XVIII que o estque de gesso têm a sua maior divulgação face à maior exigência de uso destes artefactos na arquitectura...aliás, factores indespensáveis a transformarem a aquitectura real numa realidade virtual, fictícia e ilusionista que "quase" assegurava a ascenção da escala humana à escala divina do Olimpo, mas não lhe permitia a dimensão sagrada.

Colocar em jogo toda a complexidade da arte do estuque, seja do ponto de vista tratadistico seja do ponto de vista do conhecimento dos construtores, permite hoje reconsiderar esta técnica no seu íntimo e assegurar que se trata-se de um património frágil e anónimo.
Estudando este material de forma mais aprofundada podemos reconhecer o progresso e as mudanças na história deste material, de forma a aceder e compreender a riqueza, o refinamento de soluções construtivas adoptadas e a importância sobre o plano arquitectónico e a escala urbana que o “fenómeno” estuque apresentou e ainda apresenta na redefinição do espaço urbano, enquanto expressão da adesão ao gosto do momento.
Cabe aqui citar Clara Palmas Devoti que, em relação às   pinturas e estuques das fachadas de Génova,  « […] tem a particularidade de não serem um facto puramente decorativo mas são também substancia da arquitectura, e é este “ser arquitectura” é que torna difícil o problema do restauro. 1»

Marsilio Ficino2 refere que a cidade não é feita de pedras, é feita de homens. Assim, e tal como provocado pelo actual pensamento da UNESCO, o que está em questão não é a dimensão de uma função, mas sim, a dimensão da existência humana 3 . A noção de património afastou-se definitivamente da matriz original do monumento histórico; “(...) a condição de património passou a abranger as mais diversificadas manifestações culturais, desde as de suporte natural às intangíveis. A uni-las o reconhecimento da sua capacidade de representar valores e necessidades que estabelecem vínculos entre o presente e o passado, dando assim coerência a um mundo em constante transformação, ou sublinham aquilo que de especifico tem cada grupo, legitimando a sua afirmação como entidade única, original e autónoma. 4”. Assim, a cidade traduz-se num património colectivo permeável e dinâmico.
“Quando se começou a considerar “históricos” não só os fatos dos “grandes”, mas também os do povo, ou seja, os fatos da economia, do trabalho, das artes, o valor da historicidade de uma cidade não pôde mais limitar-se aos monumentos, mas estendeu-se a todo o tecido urbano. 5 ” Este, potencia o património imaterial que, intrinsecamente, lhes está associado e ajuda à sua integração memorial, benefício da sua materialidade e enraizamento físico no mundo 6.
Na perspectiva da arte do estuque artístico, a leitura da cidade não pode ser vista apenas como, exclusivamente, o produto resultante das técnicas da construção e da arquitectura. Há todo um conjunto de artes, que em dada época se poderiam chamar de integradas 7, que também concorrem para estabelecer a realidade visível da cidade 8. É durante o século XX que, em Portugal, ocorre uma ruptura definitiva entre as técnicas urbanas e as técnicas artesanais 9, intimamente relacionada com um sistema da economia e da estrutura social. Vivemos uma mundialização; um mundo integrado de objectivos económicos, onde a existência das técnicas de construção tradicional e das artes integradas que eram aplicadas em maior ou menor escala, de acordo com a capacidade económica do mandatário do trabalho, estão num processo de desaparecimento ou, no mínimo, de completa estagnação e em perda eminente. A determinante existência de falta de articulação entre a conservação da matriz antiga e o quotidiano citadino levantou antagonismos, que conduziram a um modelo de desenvolvimento urbano que desprezou a cidade como testemunho da história .

Esta relação intima entre os aspectos histórico-artísticos que determinam a existência da arte da escultura artística em estuque a partir do XVIII, e a sua manutenção ao longo de um XIX e, incluso, parte do XX, tal como em outras situações, decorre de uma engrenagem de fenómenos resultantes dos aspectos sociais e económicos do Porto e de outras cidades e lugares de Portugal. A arte do estuque, ao ser usada como um valor social, desenvolve-se em conjunto com uma nova ideia da história, e direcciona-se para os factos inerentes ao quotidiano das pessoas. Esta temática tem o potencial de ser adaptada, funcionar como recurso e usado na evidência das especificidades da sociedade; anuncia a história de uma zona, região, povo e ambientes onde se particularizam necessidades e interesses. Assim, estas configurações artísticas estão intimamente associadas aos “ambientes”10 das cidades, porque a sociedade da época assim o permitiu, quase como se tratasse do resultado das necessidades e do comportamento dos seres que a habitavam.

Neste contexto, os trabalhos em estuque artístico que "circulam " pela cidade, são detentores de uma herança da arte da escultura decorativa em estuque, quer de interior, quer de exterior, que podem ser decompostos num numeroso conjunto de artistas, artesãos, desde conhecidos como os Baganhas, os Ramos e os Meiras, até aos simples anónimos. Assim, este património integrado e vivo dentro da própria cidade, exposto e escondido em imóveis públicos e privados, é determinante para a nossa identidade, que também se sintetiza no lugar que habitamos. À semelhança dos monumentos, acabam por comunicar “imaginabilidade”11 . Com esta qualidade, estes pequenos, mas grandes episódios urbanos, demonstram um potencial e uma capacidade para evocar uma imagem forte em quem observa, e que concorre para a salvaguarda da memória da cidade. Tratam-se de factores patrimoniais, que nos remetem para momentos particulares da historia da(s) cidade(s), onde se registam etapas de crescimento das mesmas, “ (…) as particularidades do seu quotidiano, os acidentes e os sobressaltos da sua historia e o modo como a população se relacionou e viveu, ao longo do tempo, com e no espaço que ocupa. Mesmo quando essas particularidades reflectem uma conjuntura com dimensões mais alargadas, isto é nacionais ou até transnacionais, é para a sua própria história e vivência que o património urbano nos remete em primeiro lugar. 12”.
Na revista Sábado de 18 de Fevereiro de 2010, no GPS, saíu um pequeno roteiro de estuques do Porto. Mínimo...mas o suficiente para, durante um dia, poder-se passar do XVIII até ao XX usufruindo da vantagem do andar a pé e de conhecer espaços únicos. Apesar de ter algumas incongruencias (que não se percebem) , vale a pena testar!


Para quem não viu aqui fica!...

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Referências
1 - Clara Palmas Devoti: Peculiarità construttive ed ambientali delle architetture dipinti genovesi ed aspetti tecnici degli interventi restaurativi, in G. Rotondi Terminiello e F. Simonetti (a cura di), Facciate dipinte. Conservazione e restauro , Atti del convegno di studi – Genova 15- 17 aprile 1982, Sagep editrice, Genova, P. 133.
2 - Filósofo Florentino (1433 – 1499). Vd. ARGAN, Giulio Carlo - Ob. cit. p. 223.
3 -Vd. ARGAN, Giulio Carlo - Ob. cit. p. 223.5 -Vd. ARGAN, Giulio Carlo - Ob. cit. p. 260.
4 - Vd. CHOAY, Françoise – Património e Mundialização. Évora: Casa do Sul Editores, 2005. p. 6 - Vd. CHOAY, Françoise – Ob. cit. p. 21.
7 - Os cursos de arquitectura e de artes plásticas estavam interligados através de uma disciplina “Integração das Artes” que era comum aos cursos de pintura, escultura e arquitectura. Por outro lado, até aos anos 50, era obrigatória que nos edifícios públicos fosse reservada uma verba destinada ao embelezamento dos imóveis. Artes de construção tradicional, arte do estuque artístico, arte da serralharia, arte da azulejaria, da pintura decorativa, etc. Vd. BASTO, Vítor Pinto – Valores esquecidos da arquitectura portuense. Jornal de Notícias, 1994. p. 8 - Vd. ARGAN, Giulio Carlo - Ob. cit. p. 75.
9 - A mudança radical de valores artísticos que processam na Europa, a afirmação crescente da Arquitectura como arte individualizada, a separação definitiva da Escola Superior de Belas Artes da Faculdade de Arquitectura promovem um esquecer e um desvanecer das correntes artísticas acessórias e destinadas a embelezar os edifícios. Esta situação está referida nas declarações de Siza Vieira e Fernando Pernes a Vítor Pinto Basto. Os mesmos também referem que, até aos anos 50, era obrigatória que nos edifícios públicos fosse reservada uma verba destinada ao embelezamento dos imóveis. Vd. BASTO, Vítor Pinto - Ob. cit. P.7.
10 - Vd. ARGAN, Giulio Carlo - Ob. cit. p. 216.
11 - Vd. LYNCH, Kevin – A Imagem da Cidade. Porto: Edições 70, 1982. p.11 - 20 .
12 - Vd. RODRIGUES, Paulo simões – Ob. Cit. p. 46.

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